Em primeiro lugar, a recusa a reduzir o ser humano a quaisquer que sejam as definições oferecidas pelas filosofias disponíveis. Em segundo lugar, a aceitação de diferentes níveis de realidade regidos por diferentes tipos de lógica. Em terceiro, a abordagem das disciplinas oferecida pela transdisciplinaridade, inclusive a nova visão da natureza e da realidade, tanto quanto a recusa da superioridade de uma determinada disciplina sobre qualquer outra. E a unificação prática e semântica de significados que transpassam e vão além de todas as disciplinas. Estamos ainda sujeitos a condicionamentos mecanicistas e reducionistas implícitos no paradigma Cartesiano/Newtoniano. O homem foi feito máquina. E assim, tornou-se objeto de técnicos. Além disso, os meios e as relações de produção capitalistas geraram um profundo processo de ruptura, de fragmentação, de egocentrismo, de desintegração da solidariedade. O homem é partido em múltiplas e conflitivas personae, a maioria delas determinadas pelas necessidades de produção e pelas demandas da sociedade capitalista. Bens de consumo baratos produzidos em larga escala são a fonte de poluição e degradação que estão ameaçando o meio ambiente em que vivemos. Fundamentalismos religiosos, sectarismos de diversos tipos, cegueiras e loucuras políticas, extremas avareza e cobiça sob o título de livre mercado são a fonte de miséria extrema, guerras e degradação humana. No campo da saúde humana, processos semelhantes acontecem. Pesquisas médicas são direcionadas às doenças geradoras de lucros e às suas drogas curativas. Parquíssimos recursos são destinados à prevenção, educação e saúde pública. O corpo humano é retalhado em partes e entregue aos cuidados de diferentes técnicos e técnicas. Sem alma, sem totalidade, sem ternura. Avareza e corrupção emergem. Ao final de tudo, pode-se concluir que as práticas políticas e as teorias econômicas ainda prevalentes abrem caminho para considerar todas essas perversidades como valores básicos, quando são de fato cruéis, fragmentadoras e polimórficas patologias humanas. Em julho de 1997, em uma entrevista para a revista Label France conduzida por Anne Rapin, quando perguntado sobre globalização e a “era planetária”, Edgar Morin respondeu que “…De fato, porque a globalização está fora de controle, ela é acompanhada por muitas instâncias de regressão. Mas, é uma possibilidade que poderia ser desejável. Obviamente, a globalização tem um aspecto muito destrutivo: ela gera anonimato, reduz as culturas individuais a um denominador comum e padroniza identidades. Contudo, ela é também uma oportunidade única para promover a comunicação e o entendimento entre as várias culturas dos povos do planeta e encorajar sua mistura (blending). Este novo capítulo acontecerá apenas quando nos tornemos inteiramente conscientes do fato de que somos cidadãos do planeta antes de tudo, e então europeus, franceses, africanos, americanos... o planeta é nosso lar, um fato que não nega os lares individuais de outros. A consciência de nosso destino global como uma comunidade é o pré-requisito para a mudança que nos permitiria agir como co-pilotos do planeta, cujos problemas se tornaram inseparavelmente inter-relacionados. Caso contrário, iremos experimentar um destino semelhante àquele da “balcanização”, uma retaliação violenta e defensiva contra etnias específicas ou identidades religiosas, o que é o oposto deste processo de unificação e solidariedade através do planeta.” Agora, a globalização aqui está, a diversidade está aqui; o pensamento linear causa-efeito ainda regula nosso mundo moderno. Como podemos lidar com um tão vasto universo de disciplinas? Como a transdisciplinaridade pode nos ajudar? O campo atual da equoterapia em todo o mundo é ainda fortemente marcado pelo paradigma tradicional Cartesiano. A Babel de expressões que perpassa nosso campo de trabalho é um sintoma preocupante, mais do que uma salutar diversidade. Marguerite Malone (Serendipity Farm, Tuscaloosa/Alabama) chamou-me a atenção para um artigo de autoria de Ann C. Alden, ex-presidente da EFMHA, no qual se empenha em listar e definir os vários anacronismos usados no campo e que ela chama de “Sopa de Alfabeto”, que poderíamos chamar de “Sopa de Letrinhas”. Para ilustrar o sintoma acima descrito, apresentamos a seguir uma breve lista de denominações usadas para identificar o que fazemos. – Riding therapy (terapia através de equitação); – Therapeutic riding (equitação terapêutica); – Riding for the handicapped (equitação para deficientes); – Riding for the disabled (equitação para incapacitados);– Hippotherapy, hippotherapie (hipoterapia); – Equinoterapia; – Equotherapy, equoterapia; – Equine Assisted Therapy (terapia com auxílio de eqüino); – Equine Facilitated Therapy (terapia facilitada pela utilização de eqüinos); – Horseback Assisted Therapy (terapia com apoio de montaria a cavalo); – Equestrian re-education (reeducação eqüestre); – Equestrian rehabilitation (reabilitação eqüestre). Sofremos todos, com certeza, as conseqüências de nossa “Sopa de Alfabeto”, em nossa querida Torre de Babel. Comunicações difíceis, algumas vezes impossível, para dizer o menos. Não apenas entre nós, mas também com nossos associados, patrocinadores, praticantes e suas famílias e com o público. Embora não seja o propósito deste trabalho justificar e explorar a necessidade de adoção de uma linguagem unificada, este autor sugere enfaticamente a expressão equoterapia, cunhada pela Ande Brasil – Associação Nacional de Equoterapia. Esta palavra simples e densa inclui os termos “Equus” e “therapeia”. A expressão equoterapia está ainda livre de conotações comprometedoras e pode bem representar a abordagem transdisciplinar para as atividades terapêuticas conduzidas com a ajuda de um eqüino e de uma equipe multiprofissional. É seguro que uma palavra universalmente aceita muito contribuiria para unificar o campo das terapias com auxílio do cavalo e o aproximaria muito do paradigma transdisciplinar. Mais sintomático do que a diversidade de denominações para nossa atividade profissional é o modo como categorizamos nossos procedimentos técnicos. Em geral, os procedimentos terapêuticos são classificados de acordo com “programas”, ou metodologias específicas, especializadas, baseadas em um dado modo de perceber a patologia do cliente e suas necessidades percebidas. Eles são muito bem fundamentados, mas são também absolutamente fragmentadores. Eles são diretamente derivados dos paradigmas fragmentários e são por eles condicionados. Programas fragmentários, não importa o quanto sejam bem fundamentados, partem de uma concepção de um sujeito fragmentado e levam a abordagens fragmentárias, a equipes fragmentadas. Não podemos desconsiderar os efeitos condicionadores de estigmas avaliativos apoiados em técnicas de diagnóstico fragmentárias, baseados em simples percepções pessoais ou preconceitos institucionalmente predefinidos: equitação para deficientes ou para incapacitados. A diversidade de campos possíveis de conhecimento capazes de contribuir para a amenização do sofrimento humano com a ajuda de eqüinos é imensa. Assim também o número de pessoas capazes de ajudar. Mas, elas estão longe de nós. Elas não atendem aos nossos “elevados” padrões e requerimentos. Elas não estão formalmente incluídas no mundo científico. Pretendemos utilizar metodologias “inclusivas”, mas excluímos mais do que incluímos. De certo modo, agrada-nos sermos “exclusivos”, “prime”. Não é mera coincidência que as estratégias de marketing explorem tanto tais expressões. E elas nos fisgam. É nosso desafio diário colocar em prática o novo paradigma em nossas atividades, em nossos procedimentos terapêuticos. Se a concepção programática é adotada, cai-se facilmente no velho paradigma. Mesmo quando se tem o discurso do novo paradigma, é extremamente difícil colocá-lo em ação. Nossas qualificações profissionais, nossa formação acadêmica, nossos treinamentos e experiências em campos específicos, nosso compromisso formal com limites legais e profissionais, tudo isso contribui para a adesão ao velho paradigma. E esses tópicos não são nada simples. Permitam-me ilustrar meu ponto de vista utilizando o Equovida, um centro de equoterapia no Rio de Janeiro, Brasil, no qual o autor exerce um papel de coordenação. Somos atualmente uma equipe de 14 profissionais: 3 psicólogos, 5 fisioterapeutas, 3 fonoaudiólogos, 1 arte-terapeuta, 2 profissionais de equitação, e dispomos de cinco cavalos. Esta equipe desenvolveu-se através de um processo de seleção natural, com muita discussão. Quem deve conduzir o cavalo? Quem conduz a sessão terapêutica? Consideremos um primeiro caso: uma menina com paralisia cerebral. Este é um caso para hipoterapia, certo? O equitador conduz o cavalo, o fisioterapeuta conduz a sessão, certo? O psicólogo conversa com a família, certo? Vejamos o segundo caso: um menino autista. Este é um caso para o psicólogo, que conduz a sessão, certo? O equitador conduz o cavalo, certo? Posso ousar dizer que a resposta pode ser não, que não está certo? A menina com a paralisia cerebral pode ter sérios problemas de comunicação, possivelmente devidos a uma certa ordem de deficiências. O menino autista pode também apresentar sérios problemas de comunicação, possivelmente devidos a outros tipos de mau funcionamento. Nós reconhecemos que também nós temos sérios problemas de comunicação. Discutimos os casos. Todos da equipe. Todos, mesmo: psicólogo, fisioterapeuta, fono, arte-terapeuta, equitador. E outros profissionais, caso os tivéssemos. Após a discussão, três ou quatro de nós vamos para a pista, todos ao mesmo tempo. Nossas sessões são sempre individuais, no que diz respeito ao praticante. Um praticante, três ou quatro terapeutas. Algumas vezes, duas sessões ocorrem ao mesmo tempo: dois praticantes, cada um com sua equipe. Os praticantes escolhem o seu parceiro principal e certamente nos ajudam a escolher o cavalo. O parceiro principal conduz a sessão. As intervenções fluem. Algumas vezes, o equitador faz a interlocução com o praticante, o fisioterapeuta conduz o cavalo, a fono faz o apoio lateral, a arte-terapeuta conversa com a família. Ao final do dia, mais discussões em equipe. A interpenetração é permanente, os quebra-cabeças são compostos de peças que mudam de forma e apresentam figuras diferentes. Nenhuma peça é rígida, fixa. Muitas vezes, o estresse emerge. O caminho mais curto não é necessariamente o melhor caminho. Mais discussão é necessária. Quando o sol começa a se pôr atrás das montanhas e a luz amarelo-alaranjado do entardecer se filtra através das folhas da grande mangueira, um halo mágico ilumina a pista. As selas, brinquedos, cabeçadas são recolhidos e guardados. Grupos se reúnem; vozes, emoções, piadas, abraços, despedidas. Outro longo e exaustivo dia acaba. Esta é a nossa equoterapia.
Amauri Solon Ribeiro - Resumo