25 de novembro de 2009

O Milagre da Neurofisiologia da Equitação


"Quando o homem e o cavalo, para realizarem tarefas conjuntas, se fundem numa única unidade biológica forma-se uma rede de cooperação neurofisiológica entre os parceiros. Esta interação entre os sistemas nervosos do Homo e do Equus ocorre, nas diversas modalidades eqüestres, em graus diferentes, e esta variação determina a dificuldade e a qualidade da equitação. Podemos afirmar que a equitação é um milagre de coincidências biológicas que, à primeira vista, o bom senso julgaria impossível de acontecer - isto porque só um milagre permitiria que dois seres programados pela natureza para a realização de tarefas vitais tão diferentes pudessem unir os seus complexos recursos fisiológicos para realizar uma mesma tarefa - e com o alto grau de eficiência verificada em algumas modalidades eqüestres."
A cooperação funcional entre homens e animais não é em si uma novidade. Desde a Antigüidade, o homem buscou entre os animais aqueles que pudessem lhe ajudar a sobreviver e até a enriquecer. Na Índia, o elefante faz, há milênios, o trabalho do guindaste hoje. Em todas as sociedades agrárias o boi puxa arados, o jumento transporta carga e, entre os povos nômades, o cavalo, a rena e o camelo, servem para o deslocamento de carga e como transporte individual. Todas estas tarefas exigem algum grau de cooperação funcional entre o homem e o animal. O que diferencia a equitação de todos os outros usos de animais - e até do uso do cavalo para tração - é a fusão neurofisiológica necessária para que o conjunto eqüestre se funda em um único ser biológico para operar ações conjuntas na guerra, nos trabalhos e nos esportes. Mas o homem e o cavalo possuem diferenças morfológicas tão acentuadas que, à primeira vista, a equitação seria um fenômeno inacreditável. A impossibilidade teórica da equitação foi confirmada em todas as ocasiões em que povos pedestres se chocaram pela primeira vez com povos eqüestres. Os pedestres viam os eqüestres com a mesma incredulidade com que você veria um hipopótamo pilotado por um chimpanzé ganhando o Grande Prêmio Brasil no Jockey. Entretanto, se olharmos o fenômeno da equitação com muita atenção, podemos distinguir onde e como a maioria das características anatômicas e neurofisiológicas das espécies Homo sapiens e Equus caballus se completam para formar o fenômeno Homo-caballus. Se a diferença entre as duas espécies é grande, as coincidências são maiores ainda! Em homenagem ao inventor da equitação, o Homo sapiens, vamos examinar primeiramente quais as suas características morfológicas e neurológicas que favorecem a equitação. Sabemos que o corpo do Homo é dividido em cabeça, tronco e membros, exatamente como o do cavalo. Mas existe uma relação de flexibilidade muito especial entre as partes do corpo humano que não existe no cavalo. O Homem evoluiu basicamente para se locomover na copa das árvores. Sim, fomos programados para braquear, isto é, para nos deslocarmos de galho em galho nos impulsionando com os braços e usando as pernas para dar mais empuxo e firmeza nos saltos aéreos. O antecessor do Homo era o 'saltimbanco da floresta', um verdadeiro 'acrobata do cipó'. A contribuição sensorimotora do homem na equitação é o seu grande senso de equilíbrio, a capacidade de usar os braços independentemente das pernas, uma postura de tronco ereto que permite deslocar o centro de gravidade para frente e para trás conforme a velocidade do cavalo, um grande número de sensores nervosos e músculos especializados que permitem excelente coordenação, entre olhos e mãos, para o manuseio de objetos. Esta habilidade manipuladora é boa e ruim. Muitos 'macacos pelados' não conseguem desenvolver uma boa equitação porque a sua compulsão manual destrói o delicado equilíbrio sensorimotor necessário para a grande performance eqüestre. Para equitar bem, o Homem tem que descartar os seus movimentos amplos e usar apenas os movimentos finos. (Quebrar pedras é mais fácil do que lapidar diamantes, é claro). Mas, do ponto de vista neurológico, o Homem desenvolveu um órgão fundamental que possibilita todo o milagre da equitação - um cérebro capaz de estabelecer enormes seqüências de relações entre os fenômenos naturais e que transformou a espécie humana numa máquina de aprender. Perceba, portanto, que o bom equitador se notabiliza primeiramente pela sua capacidade de aprender com o cavalo e não pela sua capacidade de ensinar ao cavalo - uma questão que obviamente tem atrapalhado muitos candidatos a cavaleiro, porque as pessoas imaginam caber a eles ensinar o cavalo a ser cavalo. O Homem, através de milhões de anos, a maioria deles de vida arbórea, desenvolveu uma série de reflexos incondicionados, isto é, involuntários, que foram passados de geração a geração e hoje representam o grande elenco de movimentos humanos. Outros reflexos são condicionados por estímulos do meio ambiente e são desenvolvidos no processo de aprendizado do indivíduo. Na equitação, estes dois tipos de reflexo - o condicionado e o incondicionado - vão interagir com os reflexos naturais do cavalo. (Veja o capítulo A Cadeia de Reflexos da Equitação). Os movimentos e as ações da equitação são iniciados pelo sistema sensorimotor do cavaleiro e completados pelo sistema sensorimotor do cavalo. Isto é, são deflagrados pelo cérebro do Homem e finalizados pelo sistema nervoso do cavalo. Vejamos agora a morfologia funcional do cavalo. O cavalo é um animal com grandes diferenças funcionais e morfológicas, se comparado com o homem. Como já vimos, a cabeça, o pescoço, o tronco e o aparelho locomotor do cavalo foram planejados para desenvolver grande velocidade em qualquer terreno. O seu esqueleto, com uma construção semelhante ao do homem é, no entanto, horizontal para se tornar mais aerodinâmico. Mas o cavalo não tem a mesma agilidade do homem. "Existe uma crença comum que o cavalo é um saltador natural com um corpo flexível capaz de manter o seu equilíbrio em todos os andamentos e velocidades", escreve R. H. Smythe em seu livro A Estrutura e o Movimento do Cavalo. "A realidade é muito diferente. Comparando com todos os animais atletas o cavalo foi provido por um tronco de grande volume e peso que depende exclusivamente das pernas para se deslocar sobre o terreno, que funciona (negativamente) como um lastro. O equilíbrio do cavalo depende de pés com um diâmetro pequeno, muitas vezes tornados mais precários com o uso de ferraduras. Esses quatro pés tem de suportar e equilibrar o cavalo na reta, subindo e descendo, ao aterrizar depois de um salto e como freio para desacelerar a sua velocidade. Nas curvas, ele tem de manter o equilíbrio, às vezes em grande velocidade, e suportar as interferências que normalmente ocorrem em competições. Uma análise mais atenta poderia sugerir que esta espécie animal não é recomendada para todas estas tarefas. Entretanto, sejam quais forem as suas limitações, o cavalo hoje consegue desincumbi-las muito bem", conclui Smythe. Note que a análise de R. H. Smythe é inteiramente mecanicista - isto é, do ponto de vista da sua mecânica o cavalo é inadequado para a equitação! O que supera esta aparente limitação mecânica é o seu sofisticado sistema nervoso, que Smythe não menciona. Donde se conclui que, como no caso do Homem, a mais importante contribuição do cavalo para a equitação é o seu sistema nervoso. O velho adágio 'No foot no horse', muito popular no passado deve ser rescrito para 'No brain no horse', muito mais de acordo com a realidade eqüestre da Era Digital. Encontramos também na conformação do cavalo algumas coincidências que favorecem a ajuste com a morfologia do homem. Um costado com a largura adequada para Homo abraçar com as pernas, um lugar para o cavaleiro se posicionar sobre o dorso, no final da cernelha, ideal para o alinhamento do seu centro de gravidade com o do cavalo. O corpo relativamente inflexível do Equus caballus é, no entanto, um dos principais elementos a favorecer a equitação. Se o cavalo tivesse um dorso flexível como o de um gato, seria impossível de ser equitado. Se tivesse a pele solta como a do cachorro, também. As coincidências psicomotoras também são notáveis. Se o cavalo fosse carnívoro e tivesse um sistema nervoso com os reflexos rápidos de um gato ele seria impossível de ser montado. A coincidência de temperamentos é outro fator que permite a fusão neurofisiológica do conjunto. O grande elenco de movimentos naturais do cavalo é inteiramente utilizado na equitação moderna e totalmente administrável pelo homem treinado para a equitação. No aspecto psicológico existem também as semelhanças necessárias para completar o milagre da equitação. Sentimentos como o medo, o prazer, a confiança, a curiosidade e a determinação fazem parte da psicologia tanto do Homo quanto do Equus e também são responsáveis para o sucesso da fusão psiconeurofisiológica da equitação. E, talvez, campos magnéticos e outras 'ondas' elétricas ainda desconhecidas pela ciência possam também ser responsáveis pelo sincronismo de movimentos e o senso simultâneo de direção e velocidade verificado nos grandes conjuntos eqüestres. O século 21 provavelmente nos dirá. Depois de uma análise, mesmo rápida, da neurofisiologia do homem e do cavalo pode se concluir que o 'saltimbanco da floresta' e o 'corredor da savana' são os únicos seres vivos capazes de se unir para formar um terceiro organismo mais eficiente do que os dois indivíduos que o formaram. Isto é, quando o instinto de independência do cavalo e instinto de interferência do homem não entrarem em choque para as tomadas de decisão durante a equitação.
"A equitação de alta performance é provavelmente uma das tecnologias biológicas mais complexas já dominadas pelo homem. A capacidade de interagir com o complexo sistema nervoso do cavalo, que produz um processo de feedback entre os parceiros, exige do equitador respostas reflexas instantâneas aos reflexos incessantes produzidos pelo cavalo. Administrar as ações de um cérebro estruturado para mobilizar um organismo muitas vezes mais potente do que a do homem, é um enorme desafio para os 10 bilhões de células nervosas que compõem o tronco cerebral, o cerebelo e o cérebro do Homo sapiens. Felizmente, a neurociência já começa a nos fornecer dados reveladores para analisarmos os princípios da equitação."
Bjarke Rink - Desvendando O Enigma do Centauro - Parte II
http://www.desempenho.esp.br/livro/get_capitulo.cfm?id=82