7 de novembro de 2009

Sobre Equitação e Liderança

Há milhões de anos, os antepassados do Homem começaram a organizar sistemas de cooperação através dos quais foram capazes de realizar melhor as tarefas de coleta e caça e a defesa do grupo, atividades vitais para a sua sobrevivência. Em cada grupo de hominídios havia uma hierarquia onde os machos e as fêmeas dominantes tomavam decisões acerca da coleta de alimentos e captura de animais, da organização interna e da defesa do grupo contra as ameaças externas. Os cavalos selvagens, pela mesma razão, formam hierarquias onde cada animal cumpre a sua função de acordo com o seu lugar na ordem social. O macho dominante é responsável pela defesa do grupo e pela fertilização das éguas e as fêmeas dominantes cuidam da ordem interna do grupo – isto é, elas botam animais com comportamento anti-social no seu devido lugar e determinam quem vai beber primeiro em bebedouros apertados e quem vai pastar nos melhores espaços do campo. Isto, além de cuidar dos seus próprios filhos. Quando um homem e um cavalo, vindos de duas organizações sociais com estruturas básicas semelhantes, mas com linguagens diferentes, se unem para formar um conjunto eqüestre, o elemento mais importante para o sucesso deste empreendimento é a capacidade do Homem entender quais são os deveres e limites da sua liderança na equitação. Em outras palavras: para fazer o cavalo se integrar às suas propostas esportivas, é importante o cavaleiro entender os princípios que regem a hierarquia eqüina. Considerando que não existem indivíduos iguais na natureza – todo ser é único, e por isso é impossível haver igualdade — os cavalos tem razão, alguém precisa assumir o comando. O ‘macaco pelado’, apesar da sua natural inclinação para a demagogia, também sabe que não existe igualdade no exercício do poder. Por esta razão ele inventou a palavra monarquia para denominar o governo exercido somente por uma pessoa e triunvirato para o caso de três indivíduos dividem o poder. Mas não existe um nome para definir o poder exercido igualmente por duas pessoas, porque isto é uma impossibilidade política. Portanto, o primeiro passo para um cavaleiro obter sucesso esportivo é assumir a liderança do conjunto – seja o seu parceiro um garanhão, égua ou cavalo castrado. Diante de uma liderança, firme, justa, leal, e que também traga satisfação para o liderado, qualquer cavalo normal se submeterá à liderança do cavaleiro na hierarquia da equitação. Mas é aí que a coisa pega. O exercício da liderança estimula o melhor e o pior do caráter humano, como você já deve ter notado. Os cientistas sociais estudam, agora, como a nossa natureza reage ao exercício do poder e já começam a entender como isto determina o sucesso ou o insucesso de uma liderança. Os conceitos básicos de liderança servem tanto para governar uma nação, quanto para administrar uma empresa ou para se equitar um cavalo. Se um cavalo for submetido a uma equitação tirânica ele poderá ser levado ao desespero e à rebeldia, principalmente se o seu temperamento e índole o qualifica para ocupar um posto alto na hierarquia eqüina. Se, ao contrário, um animal for submetido a uma equitação sem liderança ele saberá assumir o governo das rédeas, mesmo que o seu lugar natural na hierarquia eqüina seja de baixo nível. Assumir uma liderança ou se submeter a uma posição subalterna é, para o cavalo, natural e necessário – porque é dessa maneira que ele sobrevive como espécie há milhões de anos. À exceção das antigas culturas eqüestres dos nômades da Ásia Central, que se desenvolveram num meio ambiente que dificilmente poderá ser repetido, os cavalos raramente foram liderados com compreensão e justiça. Na máquina econômica e militar do ocidente, o animal foi utilizado e manejado como um escravo, por pessoas geralmente desqualificadas para esta importante responsabilidade. Na Inglaterra, no século 19, acreditava-se que os trabalhadores braçais fossem incapazes de desenvolver uma boa equitação por terem perdido a sensibilidade das mãos, ‘calejadas’ pelo trabalho. Isto é apenas mais um equívoco do ‘velho mundo do cavalo’. Algumas pessoas realmente não conseguem atingir um bom nível de equitação – mas não por terem excesso de calos nas mãos –apenas por falta de uma educação que poderia, também, ter lhes dado um posto mais alto na hierarquia humana. Convém, para ganharmos maior compreensão sobre o conceito de liderança na equitação, fazermos uma breve análise do que esta palavra significa na prática. Vejamos: exercer uma liderança é saber se fazer obedecer. A forma mais elementar de se fazer obedecer é através da repressão e da tirania. Este modelo de liderança tem sido exercido nas organizações militares há milênios. A forma repressiva de liderança se consolidou entre nós porque ela é mais econômica – dispensa muita conversa, sutileza e diplomacia, possibilitando a administração de um grande número de soldados por um pequeno número de comandantes. Mas temos, também, exemplos de liderança carismática vindos dos altos escalões militares. O discurso de Henrique V da Inglaterra para os seus soldados momentos antes da batalha de Agincourt, onde os ingleses estavam em desesperada minoria contra os franceses, está entre os melhores exemplos de liderança já registrados. Disse o rei dos ingleses: “Se nós estamos marcados para morrer somos, em número, o bastante para fazer falta ao nosso país; e se estamos marcados para viver, quanto menos formos, maior será o nosso quinhão de glória; deste dia em diante, até o fim do mundo, nós seremos lembrados; nós, os felizes poucos; nós um bando de irmãos”. As palavras do monarca ainda são capazes de emocionar, quatro séculos depois da manhã chuvosa em que elas foram pronunciadas (1).
O repressivo sistema militar se consolidou de tal maneira na nossa sociedade que, até a década de 60 do século 20, serviu de modelo administrativo para grandes empresas americanas e européias. E, há séculos, o nosso relacionamento com o cavalo e as técnicas de doma e equitação também foram exercidas com os critérios disciplinares repressivos copiados do exército. E deu no que deu. O cavalo esportista tem necessidades básicas, tanto fisiológicas quanto psicológicas, que precisam ser satisfeitas para que ele atinja um alto nível de performance. A forma mais eficiente de liderança, e a melhor para se lidar com a natureza do animal, é a liderança esportiva onde o carisma e a capacidade de inspirar os atletas é a alma do sucesso. Aquele décimo de segundo a menos na corrida, aquele centímetro a mais na vertical do salto, aquela manobra radical no pólo e o toque extra de precisão no dressage são impossíveis de se obter por meio de coação – como já explicou Xenofonte há mais de dois milênios. Aquele ‘algo mais’ que determina as vitórias surge da absoluta cumplicidade entre cavaleiro e cavalo, quando estes fundem as suas qualidades fisiológicas para se tornarem uma só força avassaladora na conquista dos seus objetivos. A decisão de se tornar cavaleiro envolve, mais do que tudo, assumir uma liderança inteligente capaz de motivar o cavalo, desenvolver a vocação atlética do animal; reconhecer os seus limites psicológicos e físicos, e encontrar soluções que favoreçam o desempenho do animal. Não é por acaso que a liderança e a equitação estão associadas ao progresso individual e social do Homo sapiens desde que os primeiros bandos de guerreiros nômades da Ásia Central compreenderam que, com o cavalo e a equitação, eles tinham descoberto a chave para liderar o mundo.
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A boa equitação é, sobretudo, um exercício de liderança. E a liderança, como tudo na vida, pode ser exercida de maneira inteligente ou de maneira estúpida. É inteligente quando atinge um alto nível de satisfação e realização para o líder e o liderado, e é estúpida quando a liderança serve apenas para a satisfação pessoal do líder e para a sua conseqüente e inevitável queda do poder. A qualidade de equitação de um povo esteve sempre vinculada ao seu desenvolvimento cultural, e o nível de equitação atingida por uma pessoa reflete inequivocamente o seu preparo para o exercício do poder. A equitação é uma metáfora da vida – o tombo do cavalo e a queda do poder, estão diretamente ligados à incompetência no exercício da liderança e do poder. A sensibilidade de desenvolver uma liderança inteligente, de assumir responsabilidades, de resolver problemas, de reconhecer o erro e tentar de novo, está na base do sucesso — qualquer sucesso. A equitação é uma metáfora da vida. A queda do poder e a queda do cavalo estão intimamente ligadas ao exercício da liderança e à arte do bem viver.
(1) Trechos do discurso de Henrique V, segundo a peça de Shakespeare com este nome.

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