18 de agosto de 2009

La Guérinière e Baucher

La Guérinière : o herdeiro da equitação cientifica
No século 18, a equitação clássica ganhou grande impulsão, e os ensinamentos racionais de Antoine de Pluvinel começaram a se fazer sentir na França. Passaram pela Escola de Equitação de Versalhes nomes como o do ecuyer Louis Cazeau , equitador criativo, até hoje lembrado. O manejo e a veterinária também evoluíram bastante deixando legados científicos como os do equitador Claude Bourgelat, da Academia de Lyon. Mas, apesar de toda essa efervescência técnico-científica do século de Goethe e da Luz e da Razão, a equitação clássica se manteve praticamente no mesmo estágio do tempo de Grisone, 200 anos antes. No seu tempo, François Robichon de La Guérinière não via as coisas com otimismo - como todos os cavaleiros, antes e depois, ele se considerava o último baluarte da boa equitação - "Eu tenho feito todo o possível para reviver a excelência eqüestre da 'época dourada da equitação'", escreve ele no prefácio de seu livro Escola de Cavalaria. "É preciso admitir, com vergonha, que perdemos algo de nossa habilidade dos tempos passados" (ele não está se referindo aos hunos, é claro). "Hoje estamos satisfeitos com apresentações eqüestres apenas medíocres". As palavras de Guérinière repetem a mesma insatisfação de M. de Pluvinel, antecipam o inconformismo de François Baucher no século seguinte e o de Decarpentry no século 20. Nenhum grande cavaleiro esteve satisfeito com a equitação do seu tempo e, como nós, todos tiveram sentimentos de nostalgia do passado -- da época dourada da equitação -- seja lá quando tenha sido isso. Todos estes grandes mestres trabalharam com absoluto respeito e reverência pelos seus antecessores. Enquanto a ciência evoluía em busca do futuro, a equitação se mantinha estacionária e voltada para o passado. Ricardo Berenger, que foi discípulo de François Robichon de la Guérinière em 1771, descreve a posição do assento e a posição das mãos do cavaleiro quase com as mesmas palavras usadas pelo Duque de Newcastle, aluno de Pignatelli na Escola Napolitana, duzentos anos antes. Berenguer escreveu que "O conhecimento da natureza diferenciada do cavalo [em relação aos outros animais] juntamente com seus vícios e imperfeições, e também da exata proporção das partes do seu corpo, é o fundamento onde construímos a teoria da nossa Arte. A desobediência do cavalo está mais freqüentemente relacionada com a incompetência do cavaleiro, do que com alguma imperfeição do próprio cavalo. Três coisas podem dar origem a isso: ignorância [desconhecimento], mau temperamento [do cavalo], ou a incapacidade física do cavalo em realizar o que foi exigido. Se um cavalo não sabe como fazer alguma coisa e for pressionado, vai rebelar-se - nada é mais comum. Ensine-o e ele saberá. Freqüentes repetições das suas aulas converterão este conhecimento num hábito e você o reduzirá a submissão precisa". Há nestas palavras muita sabedoria mas nenhuma evolução sobre os conhecimentos passados. As 'ajudas' descritas por La Guérinière no capítulo 'Ajudas e castigos' têm os mesmos princípios de Grisone - "As 'ajudas' são utilizadas para antecipar o erro do cavalo e o castigo é para corrigir o erro cometido e, como o cavalo só obedece com medo do castigo, as 'ajudas' são apenas para avisar ao cavalo de que será castigado caso não obedeça. O chicote é ao mesmo tempo uma 'ajuda' e um castigo". La Guérinière afirmava que ... "poupar o uso das 'ajudas' e do castigo é uma das características mais desejáveis do equitador". Numa única frase La Guérinière faz a apologia das 'ajudas' como método de castigo e a seguir (corretamente) as desaconselha. Enquanto a ciência estava dando saltos qualitativos em todas as frentes, François Robichon de la Guérinière só pensava em reviver o 'esplendor' eqüestre do passado. Os cavalos no tempo de La Guérinière, não eram todos de alta escola, um passatempo de gente rica e para o qual poucos cavalos eram fisicamente aptos. A maioria era usada para viagens, caça, corrida, guerra e também para o trabalho. Isto naturalmente produziu um conflito de opiniões entre os cavaleiros da equitação clássica e os de trabalho, sobre o melhor uso do cavalo, sendo comum algumas cabeças quentes trocarem insultos e comentários ácidos a respeito da atividade eqüestre do próximo. (Exatamente como a turma da equitação clássica faz hoje com a galera da equitação rural - e vice versa). Os cavaleiros da equitação de trabalho argumentavam que o excesso de reunião exigido do cavalo na equitação-arte tirava a impulsão do animal e o tornava inútil para qualquer trabalho de velocidade. Como já vimos, os defensores da alta escola ainda usavam os argumentos de Newcastle que distinguia com bastante clareza a diferença entre a equitação-arte e o uso diário e prático do cavalo. Mas, o próprio La Guérinière resumiu o capítulo sobre saltos de obstáculos, em seu livro, a meia página, e dá apenas alguns conselhos displicentes de como treinar o cavalo para 'pular' (Um sinal claro do seu desprezo por este esporte). O objetivo dele era claramente reviver 'a era dourada' da equitação-arte do passado, mesmo que ninguém soubesse quando. "E o mundo foi rodando nas patas dos seus cavalos", como diria Geraldo Vandré, com os equitadores clássicos do século 18 a insistir no rigor escolástico da equitação-arte e não admitindo qualquer outra forma de equitação. Os cavaleiros Prussianos deste período também esqueceram da lição que Frederico 'o Grande' havia lhes ensinado na Guerra da Sucessão Austríaca - "o cavaleiro deve superar com rapidez qualquer obstáculo do terreno - e avançar, avançar, avançar", e voltaram-se saudosamente, depois das agruras da guerra, para a equitação estacionária do manual de La Guérinière. A magnífica cavalaria russa, incluindo os cossacos (lamentavelmente), foi também orientada para seguir o exemplo dos prussianos. Mas, como os oficiais russos só haviam 'ouvido o galo cantar, mas não sabiam onde', alguém traduziu o livro École de Cavalarie de La Guérinière para o russo e os andamentos velozes foram eliminados, a reunião introduzida, e os cavalos perderam todo o seu condicionamento e se tornaram incapazes de exercer qualquer atividade de campo. Felizmente (para os russos) na guerra Russo-Turca de 1828 a cavalaria turca também tinha sido disciplinada a la France e os soldados, com as técnicas novas e túnicas apertadas, caiam freqüentemente dos seus cavalos, que também não sabiam avançar sobre os escombros da guerra, e se atrapalhavam com qualquer obstáculo do terreno. (A guerra russo-turca terminou, é claro, numa grande vídeo-cacetada, com um empate técnico entre os trapalhões). Confundir equitação-arte com arte marcial só podia mesmo dar nisso. Este desentendimento entre os cavaleiros que achavam que a verdadeira equitação era representada pela alta escola, estacionária e espetacular, e os que preferiam a equitação esportiva, veloz e avante, está na raiz da grande controvérsia havida 100 anos depois na França entre François Baucher e Antoine Cartier D'Aure. Só que, depois da Revolução Francesa, algum malvado trocou os discursos dos adversários, e a nobreza, representada por D'Aure, agora defendia a nova equitação esportiva, enquanto a burguesia, representada por Baucher, a tradicional equitação-arte. O Duque de Newcastle, em seu túmulo, deve ter coçado a cabeça, sem entender nada.


François Baucher : "É ao cavaleiro, e sempre ao cavaleiro, nunca ao cavalo, que se deve imputar a culpa de uma má execução".


Natural de Versalhes e pouco se sabe da sua origem, provavelmente porque pouco há para contar. Alguns historiadores afirmam que ele nasceu perto da Escola Real de Equitação de Versalhes, e o próprio Baucher já declarou que assistia diariamente aos exercícios e desfiles lá realizados — e que admirava, sobretudo, o ecuyer Conde d'Abzac (o mestre equitador da Escola de Versalhes) nas suas idas e vindas para as paradas militares. A vida profissional de Baucher começou sob a tutela do tio, num manege de Milão. Por volta de 1820, aos 24 anos, ele foi para Le Havre, na Bélgica, e lá assumiu o comando de um manege. Em 1834, insatisfeito por achar que estava longe dos grandes centros eqüestres — e possuído por um alto senso de missão para ensinar os métodos que estava desenvolvendo — Baucher mudou-se para Paris. Lá se associou a um membro de uma ilustre família de equitadores, Jules Charles Pellier. O novo sócio era proprietário de um circo-manege, uma nova forma de espetáculos circenses que, além das tradicionais apresentações de malabaristas, mágicos, domadores e palhaços, apresentava reprises eqüestres da Alta Escola. O circo-manege estava entrando na moda em Paris e, além de atrair o menu peuple, (o povão, como diríamos no Brasil), os espetáculos eqüestres começavam a atrair a nobreza, concorrendo com as óperas e os balés. Nesta época pós-revolucionária, pós-napoleônica e pós-restauratória dos Bourbons no trono da França, o país estava num torvelinho ideológico, com a nobreza ficando, aparentemente, mais burguesa e a burguesia ficando cada vez mais nobre — dá para entender? Mas, a crescente popularidade de Baucher, o burguês, nos espetáculos eqüestres do circo-manege começou a alinhá-lo, em rota de colisão, com outro equitador famoso, o conde Antoine Cartier D'Aure, também defensor de uma 'nova equitação', menos voltada para os espetáculos e mais orientada para os esportes eqüestres praticados ao ar livre, em consonância com a equitação inglesa e prussiana. D'Aure foi o introdutor, na França, da sela inglesa, dos loros curtos e do trote elevado — "Uma equitação avante, mais uma vez avante e avante novamente", como gostava de dizer. Era uma filosofia de equitação voltada para o esporte, que mobilizava muita gente, desde os tempos de Antoine de Pluvinel e François Robichon de la Guérinière. Em 1840, Baucher e D'Aure eram duas locomotivas se aproximando nos mesmos trilhos, em alta velocidade. Mais cedo ou mais tarde haveria uma colisão ideológica entre os dois cavaleiros. A publicação, em 1842, do livro Méthode d'Equitation e um convite a Baucher para ensinar a sua nouvelle méthode nas academias militares de Paris, Saumur e Lunéville precipitou o sinistro. Baucher foi convidado a ensinar os seus métodos no exército francês entre 1842 e 1845. Mas depois, com a morte do seu padrinho, o duque D'Orleans, e com a ascensão do irmão deste, o duque de Nemours — um d'aurista ferrenho — para a chefia do comitê de cavalaria francesa, aconteceu o inevitável: caiu Baucher e subiu D'Aure, o protegido de Nemours. Depois desta derrota política, François Baucher saiu de Paris e viajou pela Europa onde se apresentou em vários circos-maneges para platéias sempre entusiasmadas. E os dois cavaleiros, o burguês e o nobre, se tornaram adversários e críticos mútuos para o resto da vida — com um escrevendo e o outro desmentindo, em livros e folhetins sucessivos. Mas nesta guerra de comunicação, quem levou a melhor foi Baucher. Após a publicação do livro Método de Equitação, de François Baucher, o conde D'Aure escreveu uma crítica intitulada Observações Sobre o Novo Método, onde D'Aure simplesmente afirma que "o uso do cavalo, a equitação e os meios de controlá-lo são demasiadamente conhecidos para alguém chegar e anunciar que descobriu um novo método". Mais adiante ele declara que "para alguém interpretar a equitação da maneira de Baucher esta pessoa nunca deve ter usado o cavalo fora do manege ou do circo — que é bem diferente de se equitar um cavalo no campo". "Infelizmente", continua D'Aure, "quando as técnicas de Grisone, Pluvinel, Newcastle e outros grandes equitadores do passado foram reintroduzidas na equitação clássica, foram usadas para treinar cavalos de circo. E agora, quando aparece 'alguém' falando em ramener e rassembler as pessoas pensam que estão ouvindo e vendo coisas novas. Além do mais, fazer um cavalo trocar de pés, elevar as mãos, dançar e valsar, atividades que parecem novidade hoje em dia, já foi mostrado por Astley, Franconi e todos os organizadores de espetáculos eqüestres — e até por Monsieur de Pluvinel, no seu famoso carrossel promovido para festejar o casamento de Maria de Medecis, com Henrique IV. Toda esta confusão" — reclamava D'Aure — "produziu poucos resultados e só serviu para ferir os sentimentos de muita gente, além de dividir a opinião pública. Espero que este conflito provoque uma reação que faça 'surgir a verdade'". D'Aure estava evidentemente sendo o porta voz de uma facção de ecuyers melindrados com a fama de Baucher. Mas, é importante notar que nos seus ataques a Baucher e ao Novo Método, D'Aure, ao contrário de outros críticos, evitou desmerecer o talento e o valor artístico da equitação de Baucher. O que estava em discussão era a eficiência dos métodos de Baucher para o uso do cavalo fora do manege — sobretudo nas competições esportivas de salto e cross-country. Baucher, para se defender, partiu para o ataque. Respondeu aos seus críticos escrevendo que "Se o meu método era conhecido antes de mim, por que não era praticado em toda a sua plenitude? Não existe um equitador sequer que não preferiria obter bons resultados de treinamento em um dia, ao invés de um mês". E acrescenta com ironia "Ou eles não entenderam ou fingiram não entender, porque não encontraram nos manuais do passado, as palavras corretas que correspondessem a este trabalho". (O comentário de Baucher sobre as 'palavras corretas' é importante e voltaremos ao assunto na terceira parte deste livro). A 'verdade' é que Baucher foi o primeiro cavaleiro de Dressage a escrever um manual 'moderno' sobre equitação. O 'novo' não era tanto a equitação descrita no seu livro. O 'novo' era sobretudo a sistematização do método e a linguagem técnica utilizada. Baucher conseguiu, impulsionado pelos novos conhecimentos da revolução industrial do século 19, o que ninguém até então havia conseguido: escrever uma obra acadêmica sobre Dressage numa linguagem de grande acurácia técnica, do ponto de vista da ciência mecânica. Entretanto, o verdadeiro problema foi que Baucher e D'Aure também confundiram equitação-arte com equitação esportiva. Baucher era claramente o artista e D'Aure o esportista, e ambos dedicaram-se a disciplinas eqüestres com objetivos diferentes. D'Aure percebeu intuitivamente que a fase da glória militar eqüestre estava em rápido desaparecimento e que o futuro da equitação estava nos esportes. Além de grande equitador, Baucher foi o grande comunicador da sua época. Ele só não soube distinguir a diferença entre arte e esporte e assim evitar a confusão que o seu sucesso provoca entre seus colegas de profissão — todos extremamente vaidosos e conservadores (como nós equitadores sempre fomos no passado, e continuaremos a ser no futuro). Na resposta aos ataques de seus críticos Baucher escreveu um folheto intitulado Respostas às Observações de M. D'Aure — onde ele, por sua vez, apontou erros graves no livro de D'Aure, intitulado — Tratado de Equitação — e mostrou que o autor, depois da publicação do livro de Baucher, apressou-se em reeditar a sua obra, corrigindo várias 'heresias' contidas na primeira versão. E, de fato, Baucher pegou D'Aure em várias 'contradições' e tirou grande proveito disso. "Quanto às minhas apresentações em circos, Shakespeare e Molière também o faziam, para o engrandecimento do teatro inglês e francês", escreveu Baucher, com sarcasmo. Tanto Baucher quanto D'Aure se agastaram bastante com a 'controvérsia do século', nome dado pelos jornalistas ao embate. No final, quem saiu ganhando foi a equitação clássica que, com os debates, se tornou mais técnica e, sobretudo, a França que se transformou novamente no principal centro eqüestre do mundo — posição que, no tempo de Baucher, havia sido ocupada pela Alemanha Prussiana. O conde D'Aure foi, sem dúvida, um individualista e um inovador — foi o precursor do 'show jumping' como disciplina eqüestre independente. E Baucher, apesar da sua nouvelle méthode, foi um continuador da alta escola. E apesar de introduzir novos movimentos, como a troca de pés ao tempo e obter grande flexibilidade e controle de seus cavalos em apresentações espetaculares, o seu tipo de equitação se manteve estacionário e orientado para o público espectador, como o de Pluvinel, Newcastle e La Guérinière nos séculos anteriores. Mesmo introduzindo novas técnicas na equitação, nem D'Aure ou Baucher trouxeram qualquer modificação conceitual à equitação clássica. Mas as suas diferenças de opinião representaram o divisor de águas onde o Dressage e o Salto tomaram caminhos distintos. O trabalho de D'Aure teve continuação com Caprilli e resultou nas provas de salto clássico. O trabalho de Baucher teve continuação com L'Hotte e Decarpentry e transformou-se na reprise do Dressage moderno.