19 de maio de 2010

Cavalo, Psicologia e Equoterapia

" II- O Psicólogo trabalhará visando promover o bem-estar do indivíduo e da comunidade, bem como a descoberta de métodos e práticas que possibilitem a consecução desse objetivo ( Princípios Fundamentais do Código de Ética do Psicólogo, 1987)".

É com base nesse e muitos outros princípios da sua ética profissional, que a Psicologia dispõe todo o seu arcabouço teórico e prático a serviço da Equoterapia. Um método não convencional, porém, não menos eficaz que outros, que promove a reabilitação de potencialidades das pessoas portadoras de necessidades especiais. Entre as contribuições teóricas e práticas estão as Teorias de Personalidade, a Psicopatologia, Teorias do Desenvolvimento, Técnicas de Avaliação Psicológica, Atendimento Psicológico. Leia em Mais Informações ...

UM SER DE HERANÇAS
De acordo com a Psicologia Analítica de Jung, o homem nasce, não somente com uma herança biológica. Recebe, também, uma herança psicológica. E, ambas, serão determinantes dos comportamentos e experiências desse ser. Essa herança psicológica é, então, chamada de inconsciente coletivo, "... não são aquisições individuais, são essencialmente os mesmos em qualquer lugar e não variam de homem para homem" (Jung, 1973). 
O inconsciente coletivo é constituído pelos arquétipos. Arquétipos são "estruturas psíquicas" sem forma ou conteúdo próprio, que servem para canalizar e/ou organizar o material psicológico, dando origem às fantasias individuais ou às histórias mitológicas de um povo. Os arquétipos possuem uma variedade incrível de símbolos associados à sua figura, mas, não representam de forma integral esses mesmos arquétipos. Contudo, quanto mais os símbolos puderem se harmonizar com os conteúdos inconscientes desses arquétipos, mais chances eles terão de evocarem no indivíduo uma resposta emocionalmente carregada. Portanto, as figuras simbólicas são as verdadeiras transformadoras de energia dos acontecimentos psíquicos.

O CAVALO COMO ARQUÉTIPO
A Psicologia ocupa-se com o estudo do comportamento humano. Apesar de algumas correntes dessa ciência, valerem-se da comparação entre o homem e os animais para a elaboração de um projeto da "psique" humana, pouco ou nada podem os psicólogos dessa área, dizer acerca do comportamento animal. Porém, a influência direta ou indireta desse sobre a vida do homem, pode e deve servir de material de pesquisa do seu próprio comportamento.
O cavalo é um animal que sempre influenciou indiretamente o homem através da sua figura arquetípica. É nesse sentido, então, que vamos pesquisar agora, um pouco sobre a carga simbólica do arquétipo cavalo e a sua influência sobre o comportamento do homem, durante a trajetória de sua existência e que se manifestaram através da mitologia, religião, histórias infantis, história nacional, folclore, etc.
Vejamos alguns desses fatos: - O cavalo com poderes mágicos: "Entre os buriatas, costuma-se amarrar o cavalo de um doente (que, segundo a crença, perdeu temporariamente a alma) perto do leito de seu amo, a fim de que dê sinais do retorno da alma do enfermo; pois, quando isso acontece, o cavalo o manifesta pondo-se a tremer"; " Quando Jesus nasceu, o burro era o meio de transporte utilizado em Jerusalém. Por isso, o Menino Jesus é sempre representado no colo de sua mãe sentada nas costas de um burro conduzido por José". O burro possui sobre as costas uma cruz formada por uma listra escura que percorre sua espinha dorsal e outra horizontal que vai de ombro a ombro. Por esse fato, várias culturas acreditam que o pêlo desse animal tem um poder de cura.
É nos acontecimentos descritos nesse tópico, que podemos comprovar, com maior nitidez, a força do arquétipo cavalo. O simbolismo do poder de cura, existente na sua figura, é fator de crença e fé profundas no restabelecimento da saúde de pessoas doentes. Por muito e muito tempo, a fé teve um lugar especial em todos os povos do mundo, porém, o pensamento ocidental, positivista, dicotômico, insiste, até hoje, em separar a mente do corpo e, consequentemente, coloca em pólos diferentes a fé e a razão. A fé, portanto, não goza mais do mesmo privilégio da razão.
A utilidade do arquétipo é, então, fazer a organização desses dois pólos e a condução deles para uma integração em direção à "cura". - Pégaso, o cavalo mitológico: "... Pégaso bebendo água no poço de Pirene, e, mal avistou a rédea dourada, o cavalo aproximou-se docilmente e se deixou cavalgar. Nele montado, Belerofonte elevou-se nos ares, não tardou a encontrar a Quimera e obteve uma fácil vitória sobre o monstro";
"A fonte de Hipocreue, situada na montanha onde viviam as musas, Hélicon, foi aberta por um coice daquele cavalo". Pela primeira passagem, podemos observar que Pégaso, o cavalo alado, ao ser cavalgado transpõe-se da Terra para o Céu, do plano de baixo para o de cima.
Ele é, portanto, um instrumento da mudança de um estado inferior para um superior. Além disso, é através do movimento da sua pata que ele faz brotar uma fonte de água que tradicionalmente, em qualquer cultura, representa a vida. Brotar é desabrochar, manifestar-se, dar saída a algo de dentro.
O cavalo, então, é portador da vida ou o meio pelo qual ela pode vir a surgir . - A Cavalaria: A própria história das instituições militares confunde-se com o uso do cavalo como arma de combate. Desde a antigüidade, o homem preocupa-se com a idéia de combater em vantagem de posição, de tal forma que lhe garanta superioridade em relação ao inimigo. Inicialmente, essa vantagem era obtida montando-se num elefante. Depois, partiu-se para a utilização de plataformas que eram empurradas e, posteriormente, surgiu a idéia de se montar no cavalo ¾ denominado de Caballus.
Atualmente, essa prática alterna-se com o uso de carros blindados ou carros de combate. Montar no cavalo significa estar em uma posição privilegiada, enxergando tudo e a todos por cima. O cavaleiro, então, passa a ter vantagem sobre seu inimigo. Com a Cavalaria, uma instituição militar, aparece a figura do cavaleiro pertencente à classe dos guerreiros. Tornar-se um guerreiro é lutar por uma causa . - Jesus e o jumentinho: "Aproximavam-se de Jerusalém. Perto do monte das Oliveiras, Jesus enviou dois de seus discípulos, dizendo-lhes: Ide à aldeia que está defronte.
Encontrareis logo uma jumenta amarrada e com ela seu jumentinho. Desamarrai-os e trazei-mos. Se alguém vos disser qualquer coisa, respondei-lhe que o Senhor necessita deles. Assim, neste acontecimento, cumpria-se o oráculo do profeta: Dizei à filha de Sião: eis que teu rei vem a ti, cheio de doçura, montado numa jumenta, num jumentinho, filho da que leva o jugo (Mateus 20, 21)." Nesse momento, o animal, na sua figura mais simples, coloca-se à disposição para realizar a termo a antiga profecia: ser o escolhido para carregar, em seu lombo, o Filho de Deus. Jesus, como qualquer outro ser humano, fora criado à imagem e semelhança de Deus ¾ o Ser Mais Perfeito ; - Um ideal de Independência: "No dia 7 de setembro de 1822, às margens do rio Ipiranga, em São Paulo, Dom Pedro tomou conhecimento dessas ordens. Com o brado de "Independência ou Morte!", desligou o Brasil de Portugal, definitivamente."
Envolto num clima teatral e, portanto, simbólico, o cavalo (montado por Dom Pedro) é personagem de um dos fatos mais importantes da história de nosso país: o dia da Independência. Tornar-se independente aqui significa estar livre, ter autonomia, sair da tutela de outro. Qualquer alternativa contrária a esse sentimento quer dizer Morte, ausência de liberdade e/ou de vida

UM SER GALOPANTE
É fundamental a importância do estudo e do trabalho da figura arquetípica do cavalo na Equoterapia. Contudo, nosso "público alvo", os praticantes, são pessoas que, com pouquíssimas exceções, possuem o mínimo de entendimento de conceitos tão abstratos, como os tratados anteriormente. Como, então, trabalhá-los nas sessões de Equoterapia?
Sabemos, de antemão, que os praticantes de Equoterapia, as chamadas Pessoas Portadoras de Necessidades Especiais (PPNE), são pessoas que possuem algum tipo de distúrbio físico (PCs, TCE, TRM ...), mental (Síndrome de Down, Oligofrenia ...) ou de comportamento (Síndrome de Asperger, Autismo, Hiperatividade ...).
Podemos, de forma geral, dizer que todos esses praticantes possuem alguma alteração no seu desenvolvimento. Os seres humanos, PPNE ou não, são seres dinâmicos durante toda a sua existência. Estão sempre em movimento, em constante evolução, em permanente desenvolvimento, pois num sentido figurado o homem é um ser galopante.
A todo momento, o homem aprende e modifica comportamentos. Isto se deve ao fato de que é um ser possuidor de necessidades vitais e, para satisfazer essas necessidades, conta com o sistema de autro-regulação do seu organismo, que detecta e encontra a melhor forma (o que não significa que é a forma mais adequada) de suprir tais carências, restaurando assim o equilíbrio. Todo movimento de carência / restauração de equilíbrio, resultará em um comportamento diferente, aprendido ou modificado. Suas necessidades são muitas, então, tantas quantas forem as suas carências, surgirão, na mesma proporção, comportamentos diferentes. Verifica-se aqui o processo de desenvolvimento do homem.

DESENVOLVENDO-SE
" O desenvolvimento mental, do mesmo modo que o crescimento físico, é um processo de esquematização, porque a mente é, na sua essência, a totalidade de uma crescente multidão de padrões ou esquemas de comportamento (A. Gesell, 1974)".
O processo de desenvolvimento é contínuo e leva tempo. Seu início é marcado no momento da concepção (fertilização da célula-ovo / organização germinativa) e avança numa seqüência mais ou menos ordenada, estendendo-se por toda a vida intra-uterina (organização pré-neural; flexão do tronco; engolir; movimentos pré-respiratórios; fechamento das mãos; etc.) e seguindo após o nascimento (funções vegetativas; controle ocular; equilíbrio de cabeça; preensão e manipulação; sentar; engatinhar; ficar de pé; andar; balbucio; fala; etc.) até que se atinja a maturidade.
Todo o desenvolvimento se dará através de quatro campos de comportamento. Esses campos são áreas interdependentes que favorecerão o desenvolvimento em sua totalidade e o seu estudo destina-se a esclarecer como o desenvolvimento se processa para cada indivíduo. São eles:
- Comportamento Adaptativo: é a capacidade de assimilar os elementos principais de uma situação, de utilizar comportamentos passados e presentes e modificá-los, na adaptação à situações novas e semelhantes (ex.: coordenação de olhos e mãos para alcançar e manusear).
- Comportamento Motor: são o motor grosseiro (as reações posturais, equilíbrio de cabeça, sentar, ficar de pé, engatinhar e andar) e o motor delicado (uso das mãos e dos dedos no movimento preensório dos objetos, além dos gestos para pegá-los e manuseá-los). - Comportamento de Linguagem: constitui todas as formas de comunicação e compreensão por gestos, sons e palavras.
- Comportamento Pessoal-Social: reações individuais às outras pessoas e à cultura. A raiz do processo de desenvolvimento se encontra no sistema nervoso. É necessário que haja a maturação de cada estrutura física do organismo para que ele se desenvolva.
Contudo, essa maturação fisiológica não é condição suficiente para a evolução dos comportamentos do homem. Há que se considerar também a influência do ambiente em todo esse processo. O organismo, por si só, não é auto-suficiente. Ele só existe dentro de um meio e seus comportamentos se derivam da relação mútua que há entre ele (organismo) e meio.
Por exemplo: "Eu vejo uma árvore... Não há vista sem algo para ser visto. Nem algo é visto se não há olho para vê-lo (Perls, 1973)". Em resumo, o potencial humano é, em grande medida, determinado biologicamente, porém, a forma como o homem vai usufruir desse potencial, utilizando-o na construção da sua pessoa, vai ser, em outra grande medida, influenciado pelo que o ambiente lhe oferece. É, então, no âmbito da interação entre as potencialidades e limitações do homem e a influência do meio exercida sobre ele, que vamos estruturar o tratamento equoterápico.

EQUOTERAPIA EM OUTRA PERSPECTIVA
Tratamos, até aqui, basicamente, de dois assuntos: o arquétipo cavalo e o desenvolvimento humano. Porém, ainda não está claro como podemos conciliar tais conceitos e aplicá-los no tratamento das PPNE. A Equoterapia trabalha com pessoas cujo desenvolvimento sofreu alterações em algum dos seus estágios. Dito de outra forma, temos pessoas cuja determinação biológica ou ambiental está alterada provocando diferenças no seu comportamento.
São, portanto, pessoas carentes de "um braço que as empurre" rumo ao desenvolvimento natural. Ou, num sentido nada figurado, de quatro patas que, através do seu movimento cinesioterapêutico, transmita cerca de 1.800 a 2.000 estímulos ao corpo dessa pessoa, que está inserida num ambiente simbolicamente preparado para a valorização das suas potencialidades. Esse é o projeto da Equoterapia. E, baseado nesse objetivo, é que ela se estrutura em três fases : Hipoterapia, Reabilitação e Pré-Esportiva. Porém, se for possível remodelar essa estrutura à luz do arquétipo cavalo, a Equoterapia seria, em outra perspectiva, assim:
- Fase do Cavalo Mágico: É a fase que antecede qualquer trabalho diretamente com o animal. Ela acontece quando se pensa na perspectiva do cavalo ser o instrumento de ajuda ao desenvolvimento das PPNE. É a fase de preparação de profissionais especializados na condução do tratamento.
É quando nasce a crença e há a procura, por parte da própria PPNE ou de sua família, pelo tratamento. É o momento da preparação do clima simbólico, necessário ao tratamento do praticante, e estende-se até o final da fase de sua avaliação.
- Fase do Pégaso: Essa fase inicia-se com a apresentação do praticante ao cavalo e vice-versa. É o momento do primeiro contato entre o par. É nessa fase que o cavalo se colocará à disposição do praticante, para o início de uma longa cavalgada. É quando o animal, com o movimento das suas patas, fará brotar a vida em quem acreditar que ali ela existe. Será, então, o começo do vôo de Pégaso com destino a um estado superior.
- Fase do Guerreiro: Essa é a fase do tratamento propriamente dito. É aqui que acontecerá o trabalho de ativação daquelas áreas de comportamento. Não é uma fase fácil. Há momentos de equilíbrio e desequilíbrio.
É o momento do praticante mesclar suas limitações e potencialidades, testar novos padrões de comportamento. É quando o praticante guerreiro é bombardeado por todos os lados pelas técnicas dos profissionais envolvidos nesse tratamento e, espera-se dele um contra-ataque, uma reação do seu desenvolvimento. E, no fim dessa fase, todos esperam que o praticante guerreiro saia vitorioso, assumindo as rédeas dessa guerra e parta para a fase seguinte.
- Fase da Perfeição: Agora, o praticante não mais se sente limitado como antes. É a fase da elevação da auto-estima. Não há mais o sentimento de deficiência. O cavalo passa a ser, então, a extensão do seu corpo e, com isso, ele pode realizar façanhas que, anteriormente, só os normais tinham condições de realizar. Houve a superação de obstáculos. - Fase Independente: É o último estágio do tratamento.
O praticante está apto, agora, a guiar-se sozinho. A confiança no cavalo é de outra ordem, não é baseada apenas na amizade estabelecida a partir daquele contato inicial. A confiança se pauta, nesse momento, no próprio auto-domínio e conseqüente domínio do animal.
Requer ao psicólogo, atenção especial à família que terá de conviver com novos parâmetros. E atenção especial, também ao praticante, que estranha-se diante da sua nova condição. É a fase da libertação dos antigos empecilhos da sua vida. É a fase da coroação do seu trabalho e da sua consagração como Pessoa, Ainda Que Com Necessidades Especiais. Mas, e daí?
Quem não as tem? Com exceção da primeira fase, essa nova estruturação segue uma seqüência puramente formal. Elas são essencialmente intercambiáveis, levando-se em conta vários fatores, como o tipo de distúrbio, o grau de alteração de desenvolvimento, a idade, a família, a condição social e, principalmente, o próprio praticante.



CONCLUSÃO
A Equoterapia é uma forma de tratamento que obriga o psicólogo a dividir com o cavalo e com o próprio praticante, os aplausos de um espetáculo que se utiliza de atrações, ao mesmo tempo, simples e de efeitos brilhantes. O suposto poder de promover melhorias à vida do homem já não se concentra somente nas mãos do psicólogo, devendo ser, também, repartido com esses dois outros figurantes. Esse, talvez, seja o fator preponderante da não convencionalidade desse tratamento.
E, com certeza, é o fator mais criticado pelo profissional que não o conhece. Mas, já nos foi apregoada a missão de descobrir novas possibilidades para o bem-estar do homem. Portanto, o psicólogo que adota o cavalo como seu colega de trabalho, assume um compromisso ético com a sua profissão e, principalmente, com a vida do seu amigo praticante.
"Em pleno meio-dia, levado pelo poderoso ímpeto de sua corrida, o cavalo galopa às cegas, e o cavaleiro, de olhos bem abertos, procura evitar os pânicos do animal, conduzindo-o em direção à meta que se propôs alcançar; à noite, porém, quando é o cavaleiro que por sua vez se torna cego, o cavalo pode então tornar-se vidente e guia. A partir daí, é ele que comanda, pois, só ele é capaz de transpor impunemente as portas do mistério inacessível à razão".
Escrito por:Davi Castelo Branco Avelar (Psicólogo do Centro de Equoterapia do Regimento de Cavalaria Alferes Tiradentes da Polícia Militar de Minas Gerais).