25 de março de 2010

A Formação Cultural do Equitador Moderno

Desde a Antiguidade até a Renascença, o cavalo e a equitação faziam parte da vida diária das pessoas. No trabalho, na guerra e nas relações sociais, a cultura e a equitação eram assuntos inter-relacionados. No século 21, o  renascimento eqüestre será marcado por um crescimento da compreensão cientifica da equitação , que mudará totalmente a visão do cavalo e do seu papel numa civilização moderna. Quando os estudos eqüestres decolarem nas universidades, e os esportes eqüestres atingirem a maturidade, ‘o mundo do cavalo’ se tornará novamente um palco para o desenvolvimento cultural, para a oportunidade de emprego, para o prazer de viver e, para os mais afortunados, uma via para a fama e a fortuna. Talvez você se surpreenda que, durante as nossas conversações eu freqüentemente faça referência aos nossos antepassados da Grécia e da Ásia Central. Tenho uma razão para isso, é claro. Os cientistas nos informam que Homo sapiens foi agraciado com uma mente que tende à compartamentalização. Leia em "Mais Informações" ...
Isto significa que as pessoas geralmente só têm consciência plena de um ângulo de uma questão – , o ângulo social, econômico, político, ético ou filosófico – e raramente conseguem analisar uma disciplina sobre novos ângulos como os da biologia, antropologia, sociologia, psicologia e outras ciências da vida. Por exemplo: analisar uma questão política sob o ângulo econômico ou uma questão psicológica pelo ângulo social costuma ser difícil para a maioria, que precisará da ajuda de um especialista.
Pelo fato de, na antiguidade, o manejo de cavalos e a equitação terem atingido um grau tecnológico relativamente alto, eu tenho me referido e estes períodos históricos para nos ajudar a construir uma visão sistêmica das disciplinas eqüestres, e tenho procurado escapar da visão eurocentrada da equitação que prevalece entre nós.
É preciso que compreendamos que nestes primeiros anos do novo século estaremos vivendo um tempo de mudanças de paradigmas entre o velho consagrado e o novo desconhecido.
No século 20, a ciência acumulou uma grande massa de conhecimento que permitirá à cultura eqüestre do século 21 passar por uma revolução e adaptar as velhas práticas medievais a procedimentos biologicamente testados, alguns semelhantes aos dos cavaleiros da Ásia Central que atingiram um alto grau de equitação por partilharem intimamente da vida do cavalo.
Algum dia os historiadores modernos reconhecerão que a equitação foi o ‘motor’ de todas as sociedades modernas e que, nos últimos quatrocentos anos, o cavalo e a equitação foi a alavanca que elevou o Ocidente à sua atual liderança mundial.
E a cultura eqüestre ocidental, como os nossos outros domínios de conhecimento, começou na Grécia Antiga que adotou a sua cultura eqüestre da Ásia Central, o berço do Centauro. Vamos voltar para a Grécia antiga e assistir ao julgamento de Sócrates em Atenas, e observar como o ‘mestre das contradições’ se refere a cavalos e a treinadores quando faz a defesa da sua filosofia de vida (mas os promotores o pegaram no final).
Vamos dar uma gorjeta para um desses moleques segurar os nossos cavalos enquanto entramos no fórum para assistir ao famoso julgamento que terminou com a morte de um dos filósofos mais importantes do Ocidente. As galerias estão cheias de espectadores e os magistrados gregos, vestidos com ricas túnicas bordadas, estão neste momento acusando Sócrates de corromper a juventude de Atenas.
O velho filósofo está de pé encarando os inquisidores de frente, seu rosto sem expressão alguma. Ao final das acusações, Sócrates, em sua própria defesa, se refere aos treinadores de cavalos da Grécia como um exemplo de bons ensinamentos.
Diz o filosofo, com voz vigorosa, apesar da idade, para os seus promotores: ‘Vejam o exemplo dos cavalos; os senhores acham que aqueles que lhes treinam perfazem a totalidade da humanidade, e existe uma pessoa que lhes prejudicam? Ou será a verdade o oposto, que a capacidade de melhorar os cavalos pertence a uma pessoa, ou a muito poucas pessoas, que são os treinadores, enquanto que as outras pessoas, que lidam com eles são as que lhes fazem mal?’
Este argumento tem uma lógica implacável, mas mesmo assim o júri acaba proferindo o veredicto de “culpado” ao acusado e quando Sócrates tem uma chance de desafiar a sentença ele pergunta ironicamente: ‘O que eu mereço para me comportar desta maneira? Uma recompensa, senhores (...) nada poderia ser mais apropriado para uma pessoa como eu do que a manutenção grátis pelo Estado.
Esta pessoa merece muito mais do que qualquer vencedor das olimpíadas, mesmo que ganhe com um cavalo, uma parelha ou uma quadriga’. Perceba viajante amigo, que quando Sócrates lutava pela sua vida, e cuidadosamente escolhia exemplos da vida real para se defender dos seus acusadores, ele escolheu mencionar os cavalos e seus treinadores. O tempo de Sócrates, o século quinto antes de Cristo, foi um período de realizações extraordinárias no ‘mundo do cavalo’.
A equitação fazia parte dos hábitos dos nobres e a ‘classe eqüestre’, os cavaleiros, estava no topo da hierarquia de Atenas. Mas mesmo assim, os povos sedentários da Europa nunca conseguiram montar a cavalo com a maestria dos arqueiros da Ásia Central, de quem eles receberam o legado eqüestre.
Na Grécia, os treinadores de cavalos estavam em grande demanda e a boa equitação estava reservada para poucos. Por isso vimos Sócrates afirmar categoricamente que ‘muita gente, se eles tiverem que fazer uso do cavalo lhe causa dano’. Depois da morte de Sócrates e da ruína da civilização greco-romana o cavaleiro da Europa não aumentou muito as suas qualificações eqüestres.
Mas isto poderá mudar no século presente quando as nações do Ocidente finalmente irão ultrapassar o conhecimento das antigas culturas do cavalo da Ásia Central, no que se refere à compreensão da psicologia, da fisiologia e da neurofisiologia da equitação. Mas será que este fato revela algum significado cultural? Claro que sim. Uma cultura eqüestre amadurecida alcança membros de todos os sexos e faixas etárias da sociedade: homens, mulheres, jovens e velhos.
E para compreendermos o significado da cultura relacionada às questões eqüestres vamos analisar esta palavra como os gregos a compreendiam, e ligá-la à cultura clássica e não apenas à lida com o gado e às práticas rurais, que se tornou a norma durante o declínio da equitação no século 20. Vamos investigar mais a fundo a ligação histórica entre equitação e cultura.
Os gregos foram os criadores da idéia da cultura e Xenofonte, o patrono da equitação clássica, foi estadista, general, filósofo e escritor. Quando, na Renascença, as grandes obras da cultura grega foram redescobertas, o movimento intelectual que se seguiu foi acompanhado pelo ressurgimento da esquecida arte eqüestre, e a equitação passou a fazer parte da bagagem cultural das pessoas intelectualmente bem preparadas.
Monsieur de Pluvinel foi conselheiro da corte francesa, diplomata, vice-governador, equitador-chefe e diretor de uma academia que ensinava esgrima, dança, filosofia, matemática e astronomia, mas com ênfase na mais bela das artes — a equitação. As academias de equitação contribuíam também para a formação ética e moral dos jovens estudantes da renascença.
A cultura eqüestre se perpetuou através de academias como Nápoles, Ferrara, Viena, Versalhes, Saumur, Pinerolo, Sandhurst, West Point e no Brasil, com a Escola de Equitação do Exército, no Rio de Janeiro. A equitação clássica além de esporte sempre foi, e sempre será, sinônimo de cultura.
As escolas de equitação do passado foram, primeiramente, centros culturais, e seus diretores homens de destaque na política ou nas ciências de seu tempo e seus alunos futuros líderes de seus países. Hoje, compreende-se por esporte toda a atividade destinada ao aperfeiçoamento físico e mental do homem, seja pela prática livre dos exercícios, seja através de competições.
A importância do esporte nas sociedades modernas reflete a preocupação dos governos do primeiro mundo em incluí-lo no currículo escolar, até o nível universitário. Nos últimos trinta anos, a descoberta de graves problemas relacionados com a vida sedentária certamente mudará muitos hábitos alimentares e o comportamento sedentário, nocivos a saúde.
Como Felipe Fernandez-Armesto recentemente escreveu: ‘O objetivo da próxima revolução será o de desfazer os excessos da última (a revolução biológica)’. E a história tem nos mostrado que a equitação tem a capacidade para interromper hábitos sedentários, nocivos à saúde. Com a rápida difusão de uma nova filosofia eqüestre, a equitação irá inevitavelmente ser associada ao desenvolvimento cultural, porque será compreendido que para atingir a equitação de alta sensibilidade, o cavaleiro terá que adquirir uma boa educação formal com conhecimentos de medicina, neurologia, fisiologia, psicologia e ecologia, as matérias correlatas para as disciplinas eqüestres avançadas.
Estimulado pela crescente importância da equitação, assuntos ligados ao cavalo estão sendo opcionais em muitas escolas americanas, canadenses, australianas e européias. Academias eqüestres privadas exigem um grau cultural avançado dos estudantes como base preparatória para a equitação avançada, e os esportes eqüestres estão sendo patrocinados pelo Estado como muitos esportes o foram nas universidades americanas e soviéticas no século passado.
A equitação pode ser considerada a forma mais completa de estimular o corpo e a mente humana e os estudos eqüestres abrirão novos campos de pesquisa a nível universitário. Com o avanço da fisiologia da equitação, a equitação clássica estará novamente ligada à cultura e à informação, como na Renascença.
E, em breve, ficará também claro que poucos atingirão um alto grau de equitação se não compreenderem questões como neurologia, fisiologia, biomecânica e psicologia, correlacionadas com a arte eqüestre. Impulsionados pela valorização dos esportes eqüestres, teremos novamente escolas de equitação que se preocuparão não somente com a habilidade eqüestre dos seus alunos, mas também com o seu nível cultural.
Estas instituições, como as academias da primeira renascença eqüestre exigirão uma boa escolaridade dos discípulos, como base preparatória para uma equitação avançada. Pela sua importância cultural é provável que as universidades dos países desenvolvidos venham a acolher a equitação clássica do mesmo modo que as universidades americanas e a antiga União Soviética promoveram os esportes no século 20.
A equitação é cultura e cultura tem as suas raízes no magistério. A equitação esportiva, reconhecidamente, a forma mais completa de se desenvolver o potencial do corpo e da mente humana, será uma importante disciplina da Educação Física.
A equitação clássica está às portas de uma revolução cultural e, toda revolução é traumática – pergunte só a Luiz XVI e Maria Antonieta que, literalmente, perderam a cabeça na Revolução Francesa. Muitas crenças arraigadas e hábitos ultrapassados desaparecerão com o desvendar da ordem biológica causal que rege a equitação de alta sensibilidade. E os reacionários, como sempre, vão resistir às mudanças.
A revolução da informação, ocorrida no ultimo quarto do século 20, já mostrou que, como o Muro de Jericó, não ficará pedra sobre pedra da organização econômica que inventamos no século 19. A chegada da tecnologia eletrônica já é a principal responsável pelo desemprego nos países adiantados.
Um enorme contingente de operários preparados para participar da “apoteose da revolução industrial” pregada por Marx, que deveria ter acontecido no século 20, estão despreparados para o que realmente aconteceu no final daquele século: a revolução da informática e o surgimento da ‘nova economia’ baseada na informação.
Com a equitação de alta sensibilidade, se abrirá um oceano cultural entre a equitação dos países pós-industriais e o “andar a cavalo” dos países em desenvolvimento.
E, nos países desenvolvidos, esta revolução cultural, ao contrário da desinformação eqüestre do século 20, vai criar empregos em todos os níveis — colarinho branco, colarinho azul e camiseta sem mangas, sem causar desemprego a ninguém.
Nos Estados Unidos, que aparentemente continuam a indicar o caminho do progresso mundial, 75 faculdades e universidades oferecem cursos relacionados com cavalos. Existem 30 carreiras profissionais ligadas a cavalos, e cada profissão exige um determinado grau de escolaridade do candidato – de ‘Avaliador de Cavalos’, que exige apenas o segundo grau, até a ‘Extensão de Especialidade Eqüestre’ onde o candidato deve apresentar Mestrado ou pH.D.
O cidadão americano com vocação eqüestre pode escolher as carreiras de treinador de cavalos, ‘personal trainer’ de cavaleiros, instrutor de equitação, administrador de empresas, advogado, contador e avaliador, profissões ligadas a empreendimentos eqüestres.
No século 21, a equitação e as disciplinas eqüestres dependerão de informação e cultura como em nenhuma outra época da história. Na educação, a equitação vai estabelecer uma ponte entre as cadeiras das faculdades de biologia, fisiologia, veterinária, zoologia, zootecnia e educação física, permitindo aos estudantes completarem a sua formação através de extensão universitária e pós-graduação em equitação.
No Brasil, as principais universidades federais, além dos cursos de extensão universitária para iniciação em vários esportes eqüestres, vão também poder oferecer pós-graduação ao nível de especialização –formação de professor de equitação – mestrado e doutorado em equitação, produzindo pesquisas de primeira linha.
O mestrado e o doutorado em áreas profissionais como a educação física, desenvolverão estudos avançados sobre a biomecânica e fisiologia do salto, por exemplo. Em arquitetura serão criados projetos avançados de instalações esportivas e montagem de pistas. Na Neurologia haverá uma série de pesquisas ligadas a neurofisiologia, com o mapeamento da atividade cerebral de cavalo e de cavaleiro durante os exercícios.
Na informática existem outras dezenas de oportunidades para criar softwares para a zootecnia eqüina, programas de treinamento e para as competições esportivas. Com a crescente importância da equitação e da indústria eqüestre nas sociedades avançadas as instituições de ensino particulares e públicas vão, como nos Estados Unidos, incluir as disciplinas eqüestres e profissões correlatas nos currículos escolares.
O cavalo, felizmente, nunca mais voltará a ser o eixo principal da indústria e do comércio internacional. Mas a indústria eqüestre, nos países do primeiro mundo, já se tornou um dos principais setores da economia, com um expressiva participação no PIB, e com o faturamento na casa dos bilhões de dólares.

Bjarke Rink é titular da Escola de Desempenho de Equitação e colunista da Revista Horse Business