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1 de setembro de 2010

Freud e a "Invenção" da Paralisia Cerebral

"Em minha juventude, não conheci outro desejo que o do saber filosófico, anelo que estou a ponto de realizar agora, quando me disponho a passar da medicina à psicologia.Cheguei a ser terapeuta contra a minha vontade..." ( Viena, 02/04/1896, carta ao seu amigo Fliess).
A 'confissão' acima revela um homem que trouxe, nesses anos vitorianos, uma luz no fim do século XIX. Uma luz que ainda não se apagou. Uma centelha que iluminou as ciências médicas e, que por seu conteúdo paradigmático, abalou muitas 'verdades científicas', ainda abala e, ainda incomodará a quem " acreditar que a ciência consiste apenas em proposições definitivamente provadas" . Leia em "Mais Informações" .

A conversão de um conceito médico em verdade científica deveria passar pelo mesmo método de descoberta de novos campos do conhecimento da mente. Assim o fez Sigmund Freud no entardecer do século XIX. Nesse período histórico de 1877, desde sua pesquisa sobre enguias e seu órgão reprodutor, até o ano de 1897, com seu último texto considerado do período "pré-analítico", ocorre o que chamo do período 'biomédico' de Freud.



A sua virada e ruptura de paradigmas com a Medicina estavam em ebulição. A revolução do inconsciente freudiano fervilhava dentro do próprio jovem judeu austríaco. Uma mutação de conceitos que, o neurologista e aspirante a uma visão não fisicalista da Vida e do corpo/mente humanos, vivenciou. Revolução que foi inicialmente marginalizada nos meios acadêmicos vienenses.



Este último escrito biomédico do pai da Psicanálise intitula-se: "Paralisia Cerebral Infantil". Foi publicado em Viena e nele, Freud esclarece que o nome "paralisia cerebral infantil" é um "nomen propium" que designa a paralisia infantil de origem cerebral. Esta distinção é porque ele já havia escrito sobre outras 'paralisias', inclusive sobre as que geraram a fonte inesgotável de sua descoberta/invenção da Psicanálise: as paralisias histéricas.



Muitas das mensagens que recebi e recebo sobre paralisia cerebral me fazem pensar o quanto não temos compreensão sobre seu histórico e história. E mais ainda que o termo não expressa terminologicamente o que realmente é vivido, sentido e experimentado pelos sujeitos que a vivenciam. Ainda cercada pelo seu nome próprio freudiano, a PC é herdeira de um preconceito e visão puramente biomédica, que restringiu sua heteregeneidade e multiplicidade de formas e modos de ser como uma deficiência.



A invenção do termo é de 1897. Isso mesmo, a "invenção", pois foi um termo criado por Sigmund Freud para diferenciar as "diplegias cerebrais da infância" (em relação à 'Doença de Little'), seu trabalho publicado anteriormente em 1883, nos Beiträge Zur Kinderheilkunde de Kassowitz. Freud, nesse trabalho faz um histórico da diplegia cerebral, e a distingue das formas surgidas em adultos, não encontrando equivalentes na neuropatologia da maturidade.
Os escritos chamados de "pré-analíticos" de Freud podem nos conduzir à uma relação surpreendente, pois há aí a passagem do neurocientista para o psicanalista. Há em um artigo de 1891 as primeiras marcas que indicam a superação paradigmática do modelo médico de pensar e criar freudiano. Ele faz distinções sobre as formas de Paralisia, já com a distinção entre paralisias histéricas, cujas manifestações são, para ele, nessa época, interrupções de funções corporais,quando o 'aparelho da linguagem' (Sprachaparat) for atingido.



Segundo as pesquisas que venho realizando há muitos anos sobre a conceituação das paralisias cerebrais, no plural, é preciso um esforço enorme para a mudança desse nome/pre-conceito que foi colado há mais de 01 século nas pessoas ditas 'paralíticas cerebrais'. Quando a denominou, Freud estava construindo mais uma diferenciação, caminhando já longe de um olhar puramente neurológico, como o de Meynert ou outros conservadores de um olhar puramente 'médico' para uma palavra artificial (kunstwort) usada como etiqueta, rótulo, para agrupar um número incerto do que se considerava, à época, uma doença.



Para Freud os nomes das doenças utilizados naquela época seriam equívocos. Em um brilhante filme de John Huston: Freud Além da Alma, podemos ver um momento (mesmo que cinematograficamente ficcional) das divergências de um jovem médico, Freud, com o olhar estigmatizante de um velho professor médico para com uma mulher considerada uma histérica. A cena é reveladora do que iria provocar naquele jovem médico, o desejo de ir além dos preceitos e dos pre-conceitos médicos que o cercavam e cerceavam.



O texto de 1897 de Freud pode e deve ser ' relido' assim como propuseram uma releitura de seus princípios fundadores da Psicanálise. Ao analisar casos de hemiplegia e diplegia, Freud reconheceu, a diferença de Little, nome mais associado à Paralisia Cerebral, que a lesão cerebral que a gerou ocorre em um cérebro que ainda não concretizou todo seu desenvolvimento.



Eis aí mais uma das interelações desse pensar proto-freudiano sobre a neuroplasticidade cerebral. Um século antes das afirmações de neurocientistas, ele afirma que na clínica dos casos estudados não há nunca a expressão direta de uma lesão anatômica. Esta passa por um distúrbio de função, sabidamente pela questão da hipóxia ou anóxia do Sistema Nervoso Central, e serão os neurônios que deverão ser levados em consideração.



Por isso estou fazendo este resgate freudiando do nome próprio que foi inventado por Freud para descrever o que Karel Bobath nos confirmou, e uma das muitas conceituações, ao dizer: "Paralisia cerebral é o resultado de uma lesão ou mau desenvolvimento do cérebro, de caráter não progressivo, existindo desde a infância. A deficiência motora se expressa em padrões anormais de postura e movimentos, associados com o tônus postural anormal. A lesão que atinge o cérebro quando ainda é imaturo interfere com o desenvolvimento motor normal da criança."



Aí se construiu uma conceituação que vem sendo modificada e novos nomes próprios sendo inventados. Lamento que ainda milhares de professores, doutores, especialistas, jornalistas, operadores dos direitos e, inclusive, familiares e pais/mães, continuem nomeando estes sujeitos com ultrapassados/caducos/reducionistas nomes: 'encefalopatia crônica da infância' (eles nunca irão amadurecer e crescer, além de serem 'doentes', com o cérebro lesado, coitados....), ou " portadores de DCO - dismotria cerebral ontogenética" ( 'sofrem' de uma 'doença neurológica' que afeta seus movimentos e lhes limita cronicamente para a vida 'normal', e ainda levanta a possibilidade de heredológicamene ser transmitida, no caso de uma leitura apressada do termo 'ontogenética' por quem não domina estas terminologias).



Procuremos no Google e teremos uma infinidade de nomes para uma única condição humana, de ampla heteronegeidade, e polissêmica na sua origem histórica. Não há uma paralisia cerebral mas milhares de ' paralisias cerebrais'. Daí nasceu o DefNet e o uso no plural desse termo. Só no dia de hoje encontrei 450.000 referências para a pesquisa sobre: conceito de paralisia cerebral. Experimentem pesquisar, pois há muitas 'pérolas' de definição, indo das clássicas às estigmatizantes.



Este texto é uma homenagem a algumas pessoas que são tratadas como 'paralisadas': Luana, Ronaldo, Suely, Edgar, Priscila, Sacha, Cida, Carolina, Guilherme e todos os 'pés esquerdos' que não precisam e nem devem ser tratados como 'exceção'.



E se assim forem vistos, dissociadamente de sua humanidade e diferenças, são e serão apenas Vidas Nuas, portanto inúteis, matáveis. E, para além de nosso olhar de repugnância ou preconceito, reforçados pelos estereótipos, para com seus ''espasmos, alterações neuromotoras, fala e contorções'', serão sempre ''paralisados''... imobilizados por nossa concepção pré-analítica, ou seja, nomeados dentro do modelo biomédico ou reabilitador.



Já dizia, András Petö, criador da Educação Condutiva, lá em Budapeste, nos anos 40, sobre sua principal descoberta, aliada aos seus conhecimentos de Piaget e Luria, que:" tanto a criança como o adulto são capazes de APRENDER e QUEREM APRENDER apesar de seu sistema nervoso poder estar severamente lesado, no sentido anatômico, como no caso das Paralisias Cerebrais", assim como todos e todas queremos aprender. E nós queremos aprender a aprender um novo modo de desconstruir a concepção paralisada no tempo sobre estes distúrbios da eficiência física?



Nomear é, em uma visão puramente clínica, e não klínica, um rémedio médico para que saibamos quem é o paciente, onde está a doença, como dar um nome confortável à este indecifrável e doloroso Outro, essa diferença que insiste em nos incomodar...
"Não desejo suscitar convicções, o que desejo é estimular o pensamento e derrubar preconceitos." Sigmund Freud



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